“Força maior” como o fundamento jurídico da alteração bilateral individual por escrito durante a pandemia e o contrato de trabalho
Na sua essência, a MP dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6, de 20.03.2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus), decretada pelo Ministro de Estado da Saúde, em 03.02.020, nos termos do disposto na Lei 13.979, de 06.02.2020 (art. 1º, caput, MP 927).
Na órbita trabalhista, por opção legislativa, o estado de calamidade pública (Decreto Legislativo 6/2020), constitui hipótese de força maior (art. 501, CLT) (art. 1º, parágrafo único, MP 927).
Na CLT, força maior é todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente (art. 501, caput). Por sua vez, não caracterizam a força maior: (a) a imprevidência do empregador; (b) os fatos que não afetam substancialmente, nem que são suscetíveis de afetar a situação econômica e financeira da empresa (art. 501, §§ 1º e 2º).
Como exemplos de situações que não caracterizam a força maior, temos: (a) medidas governamentais de caráter geral no campo da economia; (b) extinção de setor obsoleto da empresa; (c) incêndio, inexistindo seguro contra fogo; (d) mau tempo, em atividade realizada a céu aberto; (e) falência e recuperação judicial (art. 449, CLT).
Ocorrendo o motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte: (a) sendo estável, de acordo com os arts. 477 e 478; (b) não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa; (c) no caso de contrato por prazo determinado, a metade da indenização prevista no art. 479 (art. 502, I e II, CLT); (d) a multa rescisória é de 20% (art. 18, § 2º, Lei 8.036/90).
Alguns especialistas têm mencionado a possibilidade de redução salarial de forma unilateral pelo empregador, nos termos do art. 503, CLT. Parece-me nos equivocada essa afirmativa, na medida em que sempre houve um concesso dos juslaboralistas que o art. 503, CLT, não foi recepcionado pela Constituição Federal, a qual exige o processo de negociação coletiva para afastar o princípio da irredutibilidade salarial (art. 7º, IV, CF).
No caso da comprovação da falsa alegação do motivo de força maior, é garantida a reintegração aos empregados estáveis e, aos não estáveis, o complemento da indenização já percebida, assegurado a ambos o pagamento da remuneração atrasada (art. 504, CLT).
Além disso, a CLT disciplina a figura do factum principis, ou seja, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade pública ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do ente de direito público responsável (art. 486, CLT). Apesar da literalidade do dispositivo legal, o entendimento predominante na jurisprudência é que a paralização temporária ou definitiva da atividade econômica, ainda que por ato de autoridade pública, está no risco da atividade econômica do empregador e não se reconhece o dever de indenizar pelo Estado. Seguramente, os debates em torno da responsabilidade civil e trabalhista do Estado pelos danos econômicos causados decorrentes da suspensão da atividade empresarial em situação de calamidade pública vai desafiar os operadores do Direito.
Durante a ocorrência do período da calamidade pública, nos termos da MP 927, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição Federal (art. 2º).
Pela determinação legal e de forma temporária, o ajuste contratual individual é o modelo normativo que irá regular a relação jurídico trabalhista (contrato individual de trabalho), em que a liberdade contratual negocial individual irá se sobrepor às demais fontes (legal e negocial coletiva), excetuando-se, quando a alteração violar os limites estabelecidos na Carta Política de 1988. Essa limitação, em especial, está inserida nos direitos sociais dos trabalhadores, os quais são previstos no art. 7º, I a XXXIV, CF.
Essa ressalva se torna importante, na medida em que a norma constitucional é a base de todo o ordenamento jurídico, sendo inadmissível que se tenha essa derrogação por um ajuste normativo em nível de acordo individual entre empregado e empregador.
No fundo, não é admissível, por exemplo, acordos individuais para a redução ou a supressão de salário, pois, a redução salarial somente é admissível por negociação coletiva (art. 7º, VI, CF).
Por outro lado, como a quase totalidade dos direitos trabalhistas estão previstos nos diversos incisos do art. 7º, muitas serão as discussões administrativas e ou judiciais quanto a aplicação da MP 927.
Por fim, mesmo que o ajuste escrito entabulado “seja possível” estar em desacordo com os modelos infraconstitucionais (legal e negocial coletivo), a Constituição Federal assegura o direito de ação (art. 5º, XXXV), além do que não se pode deixar lado a aplicação sistêmica e teleológica dos princípios constitucionais e trabalhistas (princípio protetor e princípio da irrenunciabilidade do Direito do Trabalho, em especial, os art. 468, caput, e art. 9º, CLT). A essência normativa do Direito estar em ser protetiva. Não é porque estamos em uma época de crise, que o trabalhador sofrerá, sem ter o direito de reivindicar, as pressões do empregador, diante de uma alteração contratual imposta, que de bilateral nada o é, a não ser um papel assinado pelas partes (empregado e empregador). Em suma, é válida a opção legislativa, contudo, cada caso há de ser analisado face a principiologia informativa do Direito do Trabalho.
De forma simplista e insatisfatória, para o enfrentamento aos diversos problemas econômicos e trabalhistas, a MP, de forma exemplificativa, prevê: (a) o teletrabalho; (b) a antecipação de férias individuais; (c) a concessão de férias coletivas; (d) o aproveitamento e a antecipação de feriados; (e) o banco de horas; (f) a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; (g) o direcionamento do trabalhador para qualificação; (h) o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) (art. 3º).
Como dito, o elenco legal é exemplificativo, logo, a priori, o teor das alterações pode alcançar quanto outra temática ou grupos de temáticas relacionadas com o Direito do Trabalho.
Texto retirado do artigo publicado por Francisco Ferreira Jorge Neto, Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante e Letícia Costa Mota Wenzel, disponível em:
http://genjuridico.com.br/2020/03/26/coronavirus-mp-927-2020/