FERTILIZAÇÃO IN VITRO – Reprodução assistida e o direito constitucional ao planejamento familiar.
Ao decidir que querem ter um filho alguns casais se deparam com a dificuldade da mulher engravidar naturalmente e, depois de investigação sobre as causas descobrem que somente com a utilização de outras técnicas poderão ser pais.
A informação da impossibilidade de gerar um filho causa no casal, sentimentos como medo, ansiedade, tristeza, frustração, desvalia, vergonha, desencadeando por vezes quadros de estresse e depressão. A situação de infertilidade é capaz de provocar efeitos devastadores tanto na esfera individual como conjugal e desestabilizar as relações sociais.
O surgimento da fertilização in vitro (ou fertilização em laboratório), uma das técnicas de reprodução humana assistida, levou esperança a diversos casais com problemas de fertilidade.
Em virtude dos altos custos dos tratamentos de reprodução assistida, poucos casais tem acesso a este procedimento, mesmo sendo a figura da família, bem jurídico da mais alta relevância.
Tamanha foi a importância que o constituinte conferiu à família, que este lhe brindou com um capítulo próprio na Ordem Social, reconhecendo-a expressamente no art. 226, como base da sociedade, afiançando sua proteção[1].
Diversos são os mecanismos constitucionais de proteção e promoção da família – palavra que, a propósito, que se repete em vinte e seis dispositivos do texto Maior. Dentre esses mecanismos, merece especial atenção a figura do planejamento familiar, tal como, reconhecido no § 7º, do art. 226; conferindo, assim, relevância constitucional aos chamados direitos reprodutivos.
- 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O planejamento familiar, portanto, está intrinsecamente ligado à temática que cuida dos direitos de reprodução e da saúde reprodutiva.
A saúde reprodutiva recebeu especial atenção pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo objeto de debate na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento[2], realizada na cidade do Cairo, em 1994, da qual o Brasil foi parte integrante. Foi definida na Conferência como: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simples a ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos”.
Esta definição teve por consequência o reconhecimento do direito a uma vida sexual segura e satisfatória, com capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Além disso, em conformidade com a definição acima de saúde reprodutiva, a Conferência também buscou delimitar a política que se entendeu como “assistência à saúde reprodutiva”, definindo-a como: “a constelação de métodos, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenindo e resolvendo problemas de saúde reprodutiva. Isto inclui também a saúde sexual cuja finalidade é a intensificação das relações vitais e pessoais e não simples aconselhamento e assistência relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis”.
Outro ponto que também merece destaque a respeito do §7º, do art. 226, da CF, é que nele está no expresso reconhecimento da importância da atuação do Estado, tanto na defesa, quanto na promoção da família. Assim, diante de seu evidente conteúdo programático, a norma impõe ao Estado uma atuação em duas frentes; isto é, indica que o Estado detém uma função preventiva, de cunho informativo e educacional; e, uma outra, de caráter promocional, no sentido de empregar recursos e conhecimentos científicos para a promoção dos direitos reprodutivos dos indivíduos.
Assim, no ano de 1996, atendendo a programática constitucional, o legislador infraconstitucional editou a Lei nº. 9.263, disciplinando, portanto, o §7º, do art. 226, da CF. Trata-se da chamada Lei de Planejamento Familiar.
De acordo com a Lei nº. 9.263/96, o planejamento familiar é direito de todo cidadão[3] (art. 1º); e consiste no “conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”[4] (art.2º), sendo concebido dentro de uma visão global, mais abrangente e integral do direito fundamental à saúde[5] (art.3).
Sob a perspectiva promocional, atividade estatal relacionada ao planejamento familiar encontra previsão no art. 9º, do referido diploma, o qual estabelece que:
Art. 9º Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção.
Verifica-se, portanto, o reconhecimento legal ao recurso às técnicas de fertilização e de concepção para a reprodução humana como medida promocional da saúde; dever de ordem constitucional (art. 196), cuja providência compete ao Estado, nos termos do art. 2º, da Lei nº. 8.080/90 (SUS):
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Sendo assim, a doutrina especializada é unívoca a respeito do tema. Nesse sentido assevera Guilherme Calmon Nogueira da Gama: “(…) o direito brasileiro admite o recurso às técnicas conceptivas como inerentes ao direitos reprodutivos das pessoas”.[6] Maria Helena Diniz, no mesmo sentido, defende que “(…) o casal estéril tem ‘direito à filiação’ por meio de reprodução assistida (…)”.[7]
Os direitos de reprodução, contudo, não são absolutos; de modo que encontram limites previstos no próprio bojo do §7º, do art. 226, e no art. 227, da Constituição Federal[8]: a dignidade da pessoa humana, a paternidade responsável e o melhor interesse da futura criança.
Esta limitação, inclusive, fica muito clara na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de nº.1.957/2010, na qual esclarece que “as técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente”[9].
Nas palavras de Guilherme Calmon, significa dizer que “(…) as técnicas de reprodução humana assistida […] somente são legítimas e constitucionais, desde que haja efetiva necessidade de adoção de qualquer uma das técnicas, combinando com o elemento anímico para o estabelecimento do vínculo paterno-materno-filial no contexto dos princípios da paternidade responsável, da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da futura criança”[10].
Desta feita, é seguro concluir que uma vez verificada a impossibilidade material ao livre exercício do direito à procriação por circunstâncias atinentes à infertilidade do casal – ou a um deles – incumbe ao Estado, por força do artigo 196, fornecer os recursos científicos necessários para o pleno exercício do direito ao planejamento familiar, tal qual assegurado no §7º, do art. 226, da própria Constituição Federal.
Artigo escrito por: OSMARIO DE OLIVEIRA FILHO, Advogado Associado do Breda & Breda Advogados.
[1] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[2] Fonte: http://www.unfpa.org.br
[3] Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta Lei.
[4] Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
[5] Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
[6] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: O Biodireito e as Relações Parentais: O Estabelecimento da Paternidade-Filiação e os Efeitos Jurídicos da Reprodução Assistida Heteróloga – Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.449;
[7] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6ª ed – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 141;
[8] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
[9] Fonte: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm
[10] Idem, p.452;