As novas regras de Direito Civil durante a Pandemia
O sistema de freios e contrapesos, concebido na obra de Montesquieu, “O Espírito das leis”, em meados do Século Dezoito, tornou-se um preceito indispensável para aquilo que veio a ser conhecido como democracia moderna, a partir da Revolução Francesa (1789). A ideia de separação de poderes, ou seja, a liberdade e independência entre Legislativo, Executivo e Judiciário, tem como contraponto, a necessidade harmonização; que encontra no sistema de freios e contrapesos, a sua maior garantia e expressão.
Em virtude do cenário de calamidade pública que atinge o Brasil em decorrência da pandemia do COVID-19, foi apresentado no Senado Federal, um Projeto de Lei que propunha constituir um “regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado”; ou seja, uma série de regras transitórias visando aplicar uma alteração sensível nas principais normas de direito privado vigentes: o Código Civil de 2002, Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Inquilinato, entre outras.
Trata-se do PL nº. 1179, que foi amplamente divulgado na mídia, dado às questões polêmicas que trouxe em seu teor, tais como, por exemplo, podemos destacar a suspensão de prazos de prescrição e decadência, a impossibilidade de concessão de liminar de desocupação nas ações de despejo, a suspensão dos prazos de aquisição da propriedade por Usucapião, a possibilidade de restrição de uso das áreas comuns do condomínio pelo síndico, e a prisão domiciliar do devedor de alimentos.
Aprovado em tempo recorde pelo Congresso Nacional, o referido projeto de lei, obedecendo o processo legislativo, assim como, o sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição Federal de 1988, foi encaminhado para avaliação da Presidência da República. Este expediente de encaminhamento das espécies legislativas para sanção ou veto presidencial, se trata de uma fórmula clássica de freios e contrapesos, a fim de que se possa evitar excessos pelo Poder Legislativo sobre os demais poderes.
Sendo assim, visando preservar elementos indispensáveis às relações privadas como, o interesse público decorrente do ordenamento jurídico pretérito, a livre iniciativa, segurança jurídica e o equilíbrio contratual, em 10/06/2020, procedeu-se o veto presidencial de uma série de artigos do referido projeto; especialmente, os artigos 6º e 7º, que tratavam da hipótese de extinção e revisão contratual por conta da teoria da imprevisão, que não fossem abrangidos pelo Código de Defesa do Consumidor ou Lei do Inquilinato; o artigo 9º que, sem realizar qualquer distinção dentre as várias modalidades de locação, impedia concessão de medida liminar de desocupação, mediante caução, nas ações de despejo ajuizadas a partir de 20/03/2020 até 30/10/2020; o artigo 11, que concedia ao síndico, poderes de restrição de uso da propriedade comum aos condôminos; e, os artigos 17 e 18, que tratavam do transporte individual remunerado de passageiros – inclusive, taxis –, que reduzia em, pelo menos, quinze por cento a retenção do valor das viagens pela empresa, e repassava tal percentual ao motorista até 30/10/2020, assim como, impedia o aumento de preço das viagens aos usuários que optassem pela utilização de tais serviços.
No pesar da balança, verifica-se que o veto, de fato, visou manter o equilíbrio das diversas relações contratuais, garantindo segurança jurídica e liberdade à iniciativa privada; visando, ainda, evitar uma situação futura de inadimplência que, possivelmente seria impagável para muitos dos contratantes. Da mesma forma, respeitou o direito de propriedade ao desarmar o síndico de um poder monocrático jamais visto, de restrição – não referendada pelos demais condôminos –, de utilização das áreas comuns que lhes são próprias.
Importante destacar que os artigos vetados pela Presidência, não foram, todavia, derrubados pelo legislativo, de modo que, o PL nº. 1179, foi publicado no Diário Oficial da União, em 12/06/2020, tornando-se na Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, que “Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)”.
Assim, a Lei nº 14.010/2020 insere no ordenamento jurídico uma série mudanças sensíveis. Vejamos: quanto as regras de prescrição e decadência, conforme o caso, impede ou suspende a contagem dos prazos a partir de 20/03/2020 até 30/10/2020; quanto às associações sem fins lucrativos, facultou a utilização de recursos eletrônicos, como da videoconferência, para a realização das assembleias, ainda que, sem previsão em seus atos constitutivos; suspendeu o direito de desistência, previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, para os casos de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos; facultou a utilização do recurso da videoconferência ou outros meios virtuais para a realização das assembleias condominiais; autorizou a prorrogação dos mandatos dos síndicos até 30/10/2020; suspendeu os prazos de aquisição da propriedade de todas as espécies de usucapião entre 20/03/2020, até 30/10/2020; e, por fim, restringiu a possibilidade de prisão do devedor de alimentos exclusivamente à modalidade de prisão domiciliar.
Possivelmente a Lei nº 14.010 poderá ter a sua constitucionalidade futuramente arguida perante o Supremo Tribunal Federal. Além disso, não há qualquer vedação ao surgimento de outras leis, que poderão acrescentar novas alterações pontuais nas relações de direito privado.
Ainda assim, diante do elevado grau de insegurança que se gerou no campo do direito privado a partir da pandemia que assolou nosso país, tanto a promulgação, quanto o veto das propostas contidas no PL nº. 1179, dão um recado muito claro, não apenas os magistrados e advogados, mas à população civil em geral, de que o enfrentamento da pandemia não servirá de pretexto à irresponsabilidade obrigacional de nenhuma espécie.
Ainda que, de alguma forma, haja o abrandamento provisório de eventuais sanções, como é o caso da prisão domiciliar do devedor de alimentos – já tratada por nós em artigo anterior (clique aqui para ler) –, bem como, uma intromissão prejudicial quanto aos prazos prescricionais e decadenciais, e para aquisição da originária da propriedade por meio da Usucapião, fato é que a Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, reafirma a construção de um ordenamento civil sensível à realidade emergencial de seu tempo; que, no entanto, não abre mão, em absoluto, do respeito ao cumprimento das obrigações e deveres civis, reforçando a famosa definição de Justiça retratada por Platão nos diálogos de Socráticos da obra “A República”, segundo a qual Justiça significa “dar a cada um o que lhe é devido”.
Artigo por
Osmario de Oliveira,
OAB/RJ 163.139