A prisão do devedor de alimentos em tempos de COVID-19
Há muito, não se discute mais sobre a possibilidade de prisão do devedor de alimentos. Fato é que, em sendo signatário do Pacto de San José da Costa Rica, o Estado Brasileiro incorporou o princípio que veda à prisão por dívidas, com exceção da dívida alimentar, tal como prevista no item 7, do artigo 7º, da Convenção Americana De Direitos Humanos de 1969 [1]:
“7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
Este princípio, inclusive, foi reproduzido no texto originário da Constituição Federal de 1988, no capítulo que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais; no artigo 5, inciso LXVII:
“LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”
Afastando-se, no ponto, qualquer discussão a respeito da possibilidade de prisão do depositário infiel – conforme já pacificado através da súmula vinculante nº. 25, do Supremo Tribunal Federal [2]–, devemos nos atentar para o caráter que da prisão do devedor de alimentos: diferente da prisão criminal, o objetivo da prisão civil do devedor de alimentos não possui caráter punitivo, mas coercitivo.
Ou seja, trata-se de um mecanismo que não tem por função a prisão em si, mas constitui num eficaz instrumento processual a fim de forçar o devedor de alimentos a quitar a sua dívida.
O aspecto coercitivo da prisão civil do devedor de alimentos se apresenta através da própria redação do art. 528, do Código de Processo Civil; dispositivo pelo qual não determina a pena de prisão como consequência imediata da dívida, pelo contrário.
Em primeiro lugar, o devedor é intimado; isto é, é provocado a pagar a dívida, ou justifique a sua impossibilidade de fazê-lo; de podo que, somente diante do descumprimento voluntário desta ordem, ou da inadmissão de sua justificativa, é que a sua prisão será decretada; vejamos:
Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
(…)
§ 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
Note-se que a regra processual está em perfeita harmonia com o princípio constitucional, na medida em que a prisão só será legal, caso a dívida seja oriunda de uma conduta voluntária e inescusável – leia-se, indesculpável – do devedor.
Além disso, a prisão civil possui um caráter tão excepcional que, ainda que o Código de Processo Civil determine que ela seja cumprida em regime fechado, exige-se que o devedor fique em apartado dos demais apenados comuns [3]; e, uma vez quitada a dívida, a penalidade imposta deverá ser imediatamente revogada pelo magistrado [4] , sob o risco de tratar-se de uma prisão ilegal.
É indiscutível que na ponderação entre o direito à liberdade daquele que deve alimentos e o direito ao mínimo existencial daquele que necessita dos alimentos como forma de subsistência, o direito deste último, via de regra, deve se sobrepor ao primeiro.
Todavia, a opção do legislador infraconstitucional pelo regime fechado de prisão, como regra geral, pode se revelar-se, em certos casos, em medida que violadora dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo constantes na própria Constituição, que assegura ao preso o respeito à sua integridade física e moral, conforme determina o art.5º, inciso XLIX.
Diante do contexto da calamitosa situação de pandemia global gerada pelo COVID-19, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº. 62, de 17 de março de 2020, a qual orienta aos Tribunais dos Estados e Magistrados medidas de prevenção à propagação da infecção causada proveniente do coronavírus. Dentre as diversas medidas, uma das recomendações diz respeito exatamente aos presos por dívida alimentícia.
O art. 6º, da Recomendação do CNJ, dispõe que:
Art. 6º Recomendar aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus.
Evidentemente, a Recomendação do CNJ não tem por condão revogar a norma processual, mas recoloca em pauta uma antiga discussão quanto a um possível direito à prisão domiciliar dos devedores de alimentos; medida efetivamente menos gravosa e condizente com a atual situação de calamidade pública que o pais atravessa.
De se notar que a possibilidade prisão domiciliar pode figurar como medida excepcional à regra do regime prisional fechado, sem que isso implique em contrariedade à lei. Tanto que, o E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao receber o habeas corpus coletivo nº. 1.0000.20.032967-0/000 [5], autorizou, em caráter liminar, o cumprimento em regime de prisão domiciliar as penas de prisão civil decretadas contra devedores de pensão alimentícia.
Medida tal como a pronunciada pelo Tribunal Mineiro, pode ser admitida nos demais tribunais dos Estados, posto que, antes mesmo da eclosão do surto de Coronavírus que assola o país, a prisão domiciliar do devedor de alimentos já vinha sendo admitida, caso a caso, por exemplo, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; vejamos:
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR. CABIMENTO. DETERMINAÇÃO DE CUMPRIMENTO DE PRISÃO DOMICILIAR. CABIMENTO IN CASU. Demonstrado que a executada apresenta sérios problemas de saúde, pois é portadora de problemas psiquiátricos, é cabível, de forma excepcionalíssima, o deferimento para que cumpra a prisão civil no regime domiciliar, pois o Código de Processo Civil estabelece que o regime prisional para o devedor de alimentos é o fechado. Recurso desprovido. [6]
Sendo assim, diante da nova conjuntura nacional que se apresenta diante do elevadíssimo risco de contaminação e propagação do COVID-19 dentro das unidades prisionais, justificam a excepcionalidade da medida a fim de que os devedores de alimentos, possam cumprir suas respectivas medidas coercitivas em sistema de prisão domiciliar.
Por Osmario de Oliveira, OAB/RJ 163.139
Fontes:
[1] A Convenção Americana De Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), foi ratificada pelo Brasil em 25.09.1992;
[2] S.V. nº. 25. “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. (Sessão Plenária de 16/12/2009);
[3] § 4º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns.
[4] § 6º Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão.
[5]https://www.tjmg.jus.br/data/files/4C/05/04/97/279F07102A890D075ECB08A8/HC_prisao_alimenticia.pdf
[6] Agravo de Instrumento, Nº 70081664815, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em: 28-08-2019;