Agricultores têm direito à posse de terra questionada pelo governo de Minas
Quando se trata de Minas Gerais, é quase impossível não lembrarmos do famoso cafezinho mineiro servido para mostrar toda a hospitalidade de uma gente de falar manso, mas que tem na sua bandeira o lema da bravura e da liberdade.
O estado tem uma história reconhecida na produção de café, batendo recordes de exportação, e foi aproveitando as condições propícias para esse tipo de cultivo que nasceu a história do café Guaií, no assentamento Campo do Meio, ao sul de Minas Gerais. A trajetória dessa marca, que poderia ser apenas um negócio comercial para muitos, começa com a ocupação pelos agricultores familiares do imóvel rural denominado Fazenda Ariadnópolis. Eles chegaram ao local na esperança de fazer daquele lugar uma área produtiva, que se autossustentasse com a produção do grão. Assim, iniciou-se o processo de luta pela desapropriação da área, que veio um ano mais tarde, em 1997.
A Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), dona do imóvel rural, teve falência decretada em 2000, e o próprio síndico da massa falida reconheceu que, desde 1998, várias famílias instalaram suas casas de alvenaria no terreno: plantando, colhendo e vivendo da terra. O mesmo ainda garantiu que a Usina Ariadnópolis estava inativa há mais de 12 anos e que seu parque industrial e maquinário produtivo se encontravam sucateados[1].
Em concordância, o estado de Minas Gerais alegou, na oportunidade em que publicou o Decreto estadual 365, de 25 de setembro de 2015[2], amparado em cláusula pétrea do artigo 5º, incisos XXIII e XXIV da Constituição Federal de 1988[3], que recortes de reportagens davam conta da presença de famílias agricultoras no imóvel há mais de 20 anos[4]. Na exposição de motivos do decreto foi relatada a presença de mais de 300 famílias vivendo há cerca de 14 anos, exercendo atividades agrícolas em regime de economia familiar[5]. O que também foi confirmado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)[6].
Embora possa se admitir divergências quanto ao termo inicial da presença de inúmeros pequenos posseiros no imóvel rural, se em 1997, 1998, 2000, 2001, 2004 ou qualquer outra data, o que parece incontroverso é que centenas de agricultores familiares exerceram a posse, em pequenas parcelas, por mais de cinco anos, de forma ininterrupta e sem oposição de quem quer que seja, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia.
O desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao conceder efeito suspensivo ao agravo de instrumento movido contra a decisão liminar da Vara Agrária do TJ-MG, lembrou que: “a situação fática desenhada demonstra que os Réus/Agravantes ocupam a área rural por considerável período, aproximadamente 14 anos, com cultivo de lavoura de café entre outros, havendo inclusive imóveis edificados nos quais residem as respectivas famílias”[7]. Essa decisão monocrática foi confirmada pela 17º Câmara Cível do TJ-MG no começo de julho.
Nos autos da ação possessória, movida pela massa falida da Capia em face dos ocupantes, a empresa informou que o suposto “esbulho” teria ocorrido em 27 de setembro de 2004, porém a peça inicial de reintegração de posse foi protocolada apenas em 2011, ou seja, quase sete anos após o fato originário da reivindicação possessória.
Essa situação encaixa-se perfeitamente no enunciado do artigo 1.239 do Código Civil:
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Mas, no último dia 19, o atual governador de Minas Gerais, Romeu Zema, revogou o decreto de desapropriação do imóvel rural objeto deste artigo, sem qualquer justificativa para tanto, que dirá argumentos jurídicos. É preciso dizer ao governador que há precedentes inclusive na suprema corte sobre a posse de área como esta ser, sim, em favor dos que lá trabalham e vivem em pequenas parcelas agrícolas. O diploma civil e constitucional brasileiro garante, pois a tornaram produtiva por seu trabalho e de suas famílias por mais de cinco anos ininterruptos e sem oposição, já que a ação de reintegração de posse foi ajuizada apenas em 2011.
Não há proteção jurídica da posse da massa falida da empresa Capia, muito pelo contrário. A posse a atrair amparo do Estado Democrático de Direito, senhor governador, é das 462 famílias, correspondentes a 2.029 pessoas que residem e produzem cerca de 2,5 milhões de pés de café, distribuídos numa área de 744 hectares, que correspondem ao valor de R$ 8,4 milhões[8]. E, para que todo este avanço produtivo fosse realizado, foi fundamental a criação em 2012, pelas próprias famílias, da Cooperativa Camponesa, que atualmente organiza a produção e comercialização de café na região.
Para além das decisões jurídicas fundamentadas nos tribunais, já está posto que vivemos um retrocesso quando tratamos dos direitos sociais conquistados com luta e também muitas mortes no campo. Para se ter uma ideia, o número de pessoas atingidas por conflitos agrários no Brasil aumentou 35%, batendo um recorde no ano passado, já que cerca de 960 mil pessoas sofreram com algum tipo de violência envolvendo disputas por áreas rurais, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra.
Que o governador mineiro tenha consciência de que, em suas mãos, a caneta que pacifica também pode servir como estopim para o começo de uma guerra que nenhum de nós gostaria de assistir.
FONTE: ConJur, acessada dia 16/08/2019